Daniel Oliveira
O Tempo
O som nefasto dos trovões anunciava mais uma edição atrasada das águas de março na noite da última quarta-feira, dia 22, na Vila São Paulo, em Contagem. Em meio aos estrondos, um grito desesperado seguido de uma explosão que cortava o bairro quase passava batido. Quase.
O soldado que chamava por seu sargento antes de ser catapultado por uma explosão podia ter assustado a vizinhança, caso ela já não estivesse acostumada à equipe de filmagem que ocupou as ruas do bairro nos últimos dez dias. E se o grito não fosse comicamente repetido à exaustão – porque o soldado havia saltado para cima, e não para trás, porque o enquadramento podia ser melhor, ou o mecanismo da explosão não havia funcionado como devia.
“Sou eu mesmo que vou cuidar dos efeitos na pós-produção, então isso facilita porque já filmo aqui pensando exatamente no que vou precisar lá na frente”, explica o diretor mineiro Guto Aeraphe. Ele é o criador de “Cidade do Sol” – websérie sobre a participação do Exército brasileiro na Minustah, missão apaziguadora da ONU no Haiti – responsável por transformar a periferia de Contagem em um cenário de guerra civil.
A inusitada locação foi obra do acaso. Natural de Itaúna, Aeraphe foi encontrar amigos na Vila São Paulo algum tempo atrás e se perdeu no bairro. Foi quando ele percebeu que estava diante de uma casa inacabada que dava vista para uma escola e uma pracinha, exatamente o que ele buscava para o projeto que estava desenvolvendo. “Encontrei tudo de que eu precisava aqui”, recorda.
Mas a história de “Cidade do Sol” começou, na verdade, em 2011. Foi quando o diretor realizou a websérie “Heróis”, premiada internacionalmente, junto com o 12º Batalhão de Infantaria de São João del Rey, que estava prestes a enviar uma tropa para a Minustah. “Fiquei pensando no processo psicológico desse jovem soldado que sai daqui e dá de cara com uma realidade completamente diferente, marcada por furacões, terremotos, pobreza, violência, sem infraestrutura”, conta Aeraphe.
Ele foi conversando com envolvidos e colhendo essas histórias, que resultaram no projeto enquadrado na Lei Rouanet como um média-metragem. Mas se o produto entregue para o Ministério da Cultura será um média, na web ele será exibido em cinco episódios de dez minutos. Os quatro primeiros focam nos diferentes protagonistas: a jornalista norte-americana Rachel Clark, que vai ao Haiti para uma reportagem e acaba sequestrada; o jovem haitiano Adrien, que a ajuda no trabalho; o antagonista Kené, que luta pela libertação do seu país e a expulsão das tropas da ONU; e o sargento Max, chefe da tropa mineira responsável pela proteção de Rachel e que deve resgatá-la quando as coisas dão errado. O último episódio conclui a história.
“É quase um piloto, uma forma de mostrar que conseguimos realizar um bom trabalho com bons profissionais em Minas Gerais”, afirma o diretor, referindo-se à duração de 50 minutos. Ele revela que seu desejo é fazer uma série maior acompanhando os seis meses que cada contingente brasileiro passa no Haiti. “Mas meu trabalho encontra mais reconhecimento lá fora que aqui dentro”, desabafa.
Daí, vem a opção por uma experiência inicial mais modesta, com orçamento de R$ 476 mil. Parte deles está sendo investida no próprio Vila São Paulo, onde a produção contratou alimentação e transporte. Para as sequências de ação demandadas pela história, o projeto contou com a consultoria e o apoio do Exército. Além de uniformes e armamento, os militares ainda realizaram um treinamento-relâmpago com o elenco nas práticas e táticas realizadas pelo Exército brasileiro no Haiti, que são diferentes das que eles fazem aqui.
“Fizemos treinamento de armas, treino físico, de contenção de multidões, de invasão de casa”, descreve o ator Breno De Filippo, enquanto faz os alongamentos e veste a parafernália militar que o transforma no sargento Max. Segundo ele, o que os soldados fazem a longo prazo, o elenco fez num tempo bem curto. “Tomamos esporro, estilo Tropa de Elite mesmo, para passar essa rigidez que a gente precisa levar para o set”, ele brinca.
Faixa marrom de jiu-jitsu e dono de uma envergadura respeitável, Breno já está acostumado com papéis de policial e militar. Veterano de produções como “Assalto ao Banco Central”, ele está habituado com as minúcias técnicas e as longas esperas que uma produção desse porte demanda. Elas são encaradas com o mesmo profissionalismo e bom humor da equipe que faz piadas entre um take e outro – bom sinal de que todos estão curtindo e acreditam no que estão filmando.
Mas para Breno, a satisfação com essa pequena Hollywood no coração da Região Metropolitana tem ainda um motivo especial. “Minha família é daqui. Fiquei hospedado na casa dos meus pais, matei a saudade. Esse lance de fazer o Haiti em Contagem é um barato”, confessa.